domingo, 19 de janeiro de 2014

O PAINTBOLL: PARTE II

“O que a história conta não passa do longo sonho, do pesadelo espesso e confuso da humanidade”. – Arthur Schopenhauer.

Depois de ver o vídeo com o massacre dos seis jovens eu não tinha como evitar. A lembrança (e suas consequências) do que aconteceu comigo, com meus amigos, e até com aqueles de quem eu não gostava muito, como o Beto, voltou com toda a força.
Primeiro foi a insônia, que me acossou durante uma semana, porque eu tinha medo de adormecer e não acordar mais, ou se acordasse, descobrir que eu estava num prédio em ruínas com um monte de corpos espalhados pelo local. Depois foi o pesadelo, do tipo que se torna recorrente quando tu passa por um trauma.
O meu? 
Estou correndo, com o sangue de pessoas que eu tinha matado ou que tinham sido mortas de alguma forma, cujo líquido vital tinha respingado na minha camiseta branca preferida durante a tarefa de execução. Sangue em abundancia também escorria por uma canaleta rente as paredes depredadas. 
Nessa hora surge o personagem principal do caos que vejo. Eu nunca, nunca consigo escapar dele: uma criatura mal costurada, tipo uma mistura do Frankenstein e do Jason, que mata o que encontra com as mãos e a boca. 
A aberração sempre me alcança quando eu chego perto de um rio vermelho de sangue e corpos despedaçados; me pega pelo pescoço e começa a apertar minha garganta, aproximando sua boca fedorenta da minha cara e aí... 
Aí eu acordo, encharcada de suor, com o corpo tremendo e o estômago dolorido por causa da ânsia de vômito.
É, aquela partida de paintboll marcou mesmo a minha vida. 
Score: Diversão 0 X 1 Terror traumático.
Esse medo desgraçado atrapalha minha vida. Sinceramente? Preferia não falar sobre o que aconteceu. Mas, em prol de um bem maior, mesmo que eu odeie me lembrar de tudo, eu resolvi.
Vou contar como foi maravilhosa a última partida de paintboll que eu joguei.

Era 00:10. Os times já estavam divididos e em seus QG’s discutindo sobre a melhor maneira de chegar ao ponto onde a bandeira tinha sido hasteada. Desta vez, ela havia sido colocada no topo da caixa de água, corroída pela ferrugem, que ficava sobre o antigo prédio administrativo da fábrica de pescados.
A escada estava muito enferrujada e com um ou dois suportes para os pés quebrados, sem falar do próprio depósito de água, que era mais velho do que Matusalém. 
“Não sei de onde o Beto tira essas ideias. Ele sabe que a caixa de água é muito perigosa, por isso a gente usa somente a laje do prédio. Hoje alguém vai se ferrar com certeza”, eu pensei, enquanto os outros integrantes da minha equipe tentavam chegar a um consenso sobre como ganhar a partida dessa noite. Nosso time não ganhava da equipe do Beto há cinco jogos.
O nosso QG era uma das câmaras de refrigeração da fábrica falida. Um espaço pequeno, em relação às outras três que funcionavam na empresa antes dela fechar. Ainda se sentia um pouco do cheiro do peixe que era estocado ali. 
Embora gostasse muito de jogar naquele lugar semidestruído, eu tenho que confessar: em algumas ocasiões, sentia um calafrio nos cantos mais escuros do campo. 
Os QG’s era um desses lugares. Eu costumava imaginar o que aconteceria se a porta trancasse e nós não conseguíssemos abri-la. 
“Bobagem”, pensei. “Foi por isso que se retirou a tranca externa e se colocou uma interna. Para evitar acidentes. O Beto pode ser um babaca, mas não é burro.” Eu racionalizei para segurar a ansiedade que sempre sentia quando estava no paintboll.
Hoje a sensação estava mais acentuada do que nos outros dias. Parecia que meu instinto tentava me avisar de que algo terrível iria acontecer.
O time em que eu jogava era sempre o mesmo, composto por um amigo meio fracote, um nerdezinho chamado Karloff, por quem eu nutria uma simpatia enorme desde que nos conhecemos na faculdade; dois colegas da polícia, com raciocínios meio lentos, mas com excelente pontaria e outros seis caras, que eu só conhecia do jogo mesmo. 
Após uma breve discussão entre os homens, o capitão decidiu quem formaria as duplas de combatente, que tentariam escoltar três jogadores (o capitão, seu homem de confiança, excelente na mira, e um rapaz franzino, mas excelente corredor). 
Eles voltariam suas energias pra chegar incólumes a tal bandeira, matando o maior número possível de adversários, e dos tais atores, que encontrassem pelo caminho. O último homem serviria como uma espécie de coelho, tentando distrair alguns soldados inimigos, correndo e atirando para todos os lados.
Eu tinha que admitir que essa estratégia nunca tinha sido tentada antes pelas minhas equipes e parecia inteligente. Assim, preferi não dar nenhum pitaco, como fazia algumas vezes, menos quando eu era a capitã (coisa muito rara). 
Em geral os colegas preferiam que eu jogasse como combatente porque conhecia alguns “atalhos” inusitados: blefes e força bruta disfarçada. “Depois de ser criada com quatro irmãos uma ‘guria’ aprende certas coisas. Seja pro bem, seja pro mal”, lembro de ter pensado, com um meio sorriso.
O capitão decidiu que eu iria fazer dupla com Karloff. Nos olhamos com cumplicidade. Geralmente era isso que acontecia. Ele somente por ser inteligente e rápido, e eu por ter agilidade, inteligência e capacidade pra protegê-lo, porque, muitas vezes, era Karloff que acabava encontrando uma estratégia de última hora pra garantir uma batalha, ou ganhar a partida, nas raras ocasiões em que isso ocorria. 
“Karloff. Por que será que os pais dele deram esse nome pro coitado?”, eu me perguntei olhando pro meu amigo. Eu nunca perguntei pra ele, pra não deixá-lo com vergonha. Ele detestava seu nome. 
Então, o sinal pra iniciar a partida soou. Eu e Karloff saímos primeiro e ficamos esperando em posição de defesa, enquanto o restante do grupo deixava o QG e se escondia atrás de algumas barricadas. 
O lugar estava mais escuro que o habitual. Com certeza, o Beto tinha desligado algumas luzes pra deixar a coisa pior do que já era, embora eu ainda não soubesse que tudo ficaria pior, muito pior. Meu instinto estava lá, apitando dentro da cabeça, me dizendo que eu deveria sair dali com Karlof o mais rápido possível, em vez de participar daquela partida maldita. 
No entanto, eu escolhi me fazer de surda pra aquilo de mais básico que havia aprendido na vida: 
Nunca ignore sua intuição.
Assim, eu e meu parceiro paramos na entrado dum corredor estreito e escuro. Nosso time começava a se dispersar, conforme as instruções do capitão. Em seguida, ouvimos o primeiro pipocar das pistolas de paintboll e um grito: “um a menos”. Era alguém do nosso grupo.
Eu e Karloff trocamos um sorriso e continuamos vagarosamente corredor adentro. Com certeza, em pouco tempo nós acabaríamos topando com algum dos atores. Foi o que aconteceu quando chegamos no fim do corredor. Vimos três pessoas vestidas com roupas comuns. Pelo pouco que enxergávamos dava pra ver que as vestes estavam rasgadas. 
Lembro que pensei: “Quê? Com tanta coisa boa pra levar pro cinema e pro teatro, eles escolhem logo ISSO? ‘Quando o inferno estiver cheio, os mortos andarão pela terra’. Ai, quem foi que permitiu Romero a começar com essa droga? Ridículo!”.
Eu me levantei para atirar nos indivíduos que estavam parados no escuro, se balançando quietamente. Mas Karlof colocou a mão em meu ombro e me puxou para o canto da parede onde os atores não podiam nos ver. 
-Karlof, precisamos atirar... 
Ele cortou minha frase, dizendo pra mim falar baixo e não sair dali. Quando eu ia perguntar porque, ele se antecipou: 
-Tem algo esquisito nisso tudo. Fica aqui, eu vou dar a volta e ver o que tá acontecendo. 
Tentei esboçar uma reação, mas meu amigo falou: 
-Faz o que eu to dizendo. Eu acho que sei do que se trata. Não sai daqui, ouviu? De jeito nenhum. – ele finalizou. 
Karloff nunca tinha falado comigo daquele jeito. Eu fiquei fula, mas obedeci, porque era Karloff. Se fosse outro cara... E, afinal, pelo que eu conhecia daquele nerd, se ele estava agindo daquela forma deveria haver uma razão. 
Meu amigo se afastou rápida e silenciosamente, percorrendo o caminho que tínhamos feito antes. Ele iria pegar o corredor que tinha do outro lado do que estávamos pra chegar nas barricadas na frente do ponto em que os atores estavam. Ele teria uma visão clara daquilo que ele ‘achava’ estranho.
Continuei agachada e espiei em direção ao grupo. Mantive minha pistola apontada pra eles. Caso Karloff não voltasse em seguida eu iria atirar e seguir em frente. Eu queria ganhar aquele jogo. 
Vi um dos atores virar em minha direção. Começou a caminhar devagar pra onde eu estava. Era impressão minha ou eu conseguia ouvir um barulhinho esquisito, como se ele estivesse farejando o ar, como um predador faz quando está caçando?
Foi quando eu vi dois jogadores do time do Beto chegarem na entrada do corredor. Um deles deve ter visto um dos figurantes, porque bateu no braço do parceiro, rindo e mostrando algo nas sombras. Depois ele levantou sua pistola e atirou contra o ator. O que vinha na minha direção ouviu o barulho da bolinha de tinta, explodindo contra o corpo do colega de encenação, e parou.
Como o ator atingido não esboçou nenhuma reação, o cara que o acertou disse:
-Oh, meu! Tu tem que cair e fingir de morto!
Foi aí que ouvi aquele grunhido pela primeira vez. Horrível, cavernoso, quase bestial. Eu fiquei ali congelada, enquanto o ‘ator’ saía das sombras rápido como um raio, jogando-se sobre o jogador, que tentava afastá-lo, gritando de forma alucinada. Eu não conseguia ver o porquê, mas já estava começando a tremer. 
Karloff tinha razão. Algo muito esquisito estava acontecendo no paintboll.
O parceiro do jogador olhava aterrado pra cena. Nisso, outro...outro (sei lá o que eram aquelas coisas) saiu do corredor, aquele que estava vindo em minha direção, e deu o bote no jogador em choque. Grudou as mãos no pescoço dele e literalmente mordeu o que encontrou pela frente. Eu só vi o cara caindo, com o monstro por cima, esguichando sangue pra tudo que é lado. O terceiro ‘ator’, por fim, se juntou ao festim macabro.
Eu nem pensei em socorrer nenhum dos caras. Simplesmente cai sentada de bunda no chão e fiquei olhando a carnificina. Tentei acreditar que aquilo tudo não passava de alguma ideia maluca do Beto. A pistola estava caída do meu lado. Se aquilo tudo não fosse encenação (e eu ainda tinha uma pequenina esperança que fosse), ela não teria nenhuma utilidade contra as bestas, que, agora eu via, estavam abrindo com as mãos as barrigas dos dois jogadores e começando a comer suas tripas, enquanto (Deus) enquanto eles ainda gritavam de dor.
Então uma mão me puxou com força do chão me empurrando contra a parede. 
Eu comecei a chutar as canelas e a empurrar os ombros da criatura. Eu não ia morrer fácil, não. Desferi um soco de direita, mas a coisa conseguiu desviar a cara. Acabei golpeando o ar e quando eu ia morder e gritar, alguém sussurrou, tapando minha boca:
-Para, Clara, para. É o Karloff. Fica quieta senão eles vem atrás da gente. Para. Para.
Eu levei alguns segundos pra processar a informação e então parei de me debater. Eu não consegui dizer nada
-Vamos, eu preciso te tirar daqui.
Então, ele me arrastou de volta pelo corredor escuro. 
Karloff, afinal, era muito mais forte do que eu pensava.

domingo, 12 de janeiro de 2014

O INOMINÁVEL

“- Não é – oh! Não é uma visão deplorável?” – 
Edgar Allan Poe.


Mas a pior coisa que ouvi chegou aos meus ouvidos através de uma testemunha ocular, comerciante de Equipamentos de Proteção Individual, 35 anos, sobrevivente da tragédia que acabou com a FETRG e parte do Centro de Eventos, porque conseguiu se esconder atrás de caixas de papelão em seu estande. Eu omiti sua identidade por segurança. Ele é uma peça chave para minha investigação.

“Eu já havia participado em outras edições da FETRG e tudo sempre foi muito organizado, tranquilo. Era improvável que algo tão ruim pudesse acontecer. Sabe, o sistema de segurança sempre tinha sido infalível.” Era possível ver a incredulidade, misturada com o terror, em seus olhos escuros.
“Mas, o improvável aconteceu. Parecia que alguém pressentiu algo no ar, mais do que viu. Imagino essa pessoa sentindo um arrepio de medo percorrer seu corpo, o suor escorrer por sua espinha. E foi esse cheiro que se espalhou pelo ambiente e colocou a multidão em polvorosa.
O resultado foi pânico geral. Gente desesperada, correndo para todos os lados. Algumas foram pisoteadas, ocasionando braços, pernas ou costelas quebrados. Crianças gritavam pelos pais, que procuravam seus filhos ou tentavam protegê-los do que estava ocorrendo, embora ninguém conseguisse identificar exatamente o que era. Parecia uma tropa de gado desembestado.
Luzes vermelhas começaram a piscar; o som de alarme explodiu nos ouvidos da multidão. As pessoas dispararam para as saídas de emergência. Som de vidros quebrados, sensação de que alguma coisa estava queimando; indício de fumaça num dos cantos afastado do Centro de Eventos.
Ninguém se importava com nada. Só em sair da feira o mais rápido possível, independentemente do que tivesse que fazer para conseguir isso. O terror induziu os visitantes a correr para todos os lados, sem saber exatamente para onde ir, e sem se preocupar com o que ocorria. As pessoas simplesmente perceberam o perigo e passaram a agir instintivamente.
Tudo isso porque uma tomada aparentemente entrou em combustão “espontânea”. Nela estavam ligados três computadores do estande da UTMIB. As fagulhas acabaram provocando um início de fogo no estande mais próximo, onde havia uma exposição sobre combustível biodegradável, com pequeno maquinário que demonstrava como o produto era produzido e pequenos galões cheios do líquido altamente inflamável. Se o fogo chegasse no combustível iria se alastrar com rapidez.
Mas o pior não foi a zoeira geral, a multidão descontrolada, o princípio de incêndio que gerou o pânico, os alarmes disparados, nem os ossos quebrados. O pior foi o que aconteceu com seis adolescentes que passeavam pela feira.
Eu estava agachado dentro do meu estande, atrás de umas caixas de papelão. Assim como eu, os guris deviam ter um pouco de sangue frio, porque não se misturaram na confusão. Ficaram num canto, aguardando o local esvaziar um pouco para saírem em segurança. 
Eu percebi que eles notaram alguma coisa estranha e acompanhei o olhar deles. Era uma sombra se esgueirando atrás dos estandes. Por fim, essa ‘sombra’ saiu do canto escuro perto da parede e se aproximou do foco do incêndio. Pelo que consegui ver vestia uma roupa laranja, aparentemente isolante, com o logotipo e a sigla da Universidade, e trazia nas costas um equipamento estranho que direcionou para o local, aparentemente para apagar o fogo. 
Foi nessa hora que um engraçadinho aproximou-se demais de um dos recipientes hiper-protegidos no estande da UTMIB, fazendo com que o alarme de segurança soasse freneticamente. Mas, os seguranças gigantescos não se apresentaram para defender o local. Estranhamente haviam desaparecido. 
O idiota gritou “Abaixo a UTMIB” e soltou dois rojões dentro do estande da Universidade. Eu notei que os jovens ficaram muito confusos não só com o que tinha sido feito com o estande da UTMIB, mas também com a reação do sujeito com roupa de proteção. Eu não conseguia ver o cara direito de onde estava, mas percebi que um dos guris começou a filmar tudo com seu celular. 
Então ouvi quatro tiros serem disparados sucessivamente. Me encolhi ainda mais atrás das caixas de papelão. Após alguns segundos, que mais pareceram um século, eu levantei a cabeça e vi um menino vomitando e um dos guris gritou que eles deveriam sair dali. O do celular continuava filmando olhando pra frente, meio que paralisado, como se tivesse visto uma coisa do outro mundo.
Quando dois dos meninos começaram a se mexer para puxar os colegas para irem embora, vieram novos disparos. Um a um os meninos foram caindo sem vida no chão. O rapaz do celular foi um dos últimos a desabar; seu aparelho deslizou pelo chão e ficou a poucos centímetros da cabeça da sua amiga que foi a última a ser alvejada, tombando no piso, onde ficou murmurando umas coisas sem sentido.
Foi aí que eu vi a ‘sombra’ caminhando de forma meio desengonçada em direção aos corpos daquelas crianças. Agora, não sei como, estava com uma roupa camuflada; ele trazia uma touca preta na mão. Quando chegou perto do primeiro corpo, eu vi sua cara. Mesmo de perfil, era horrível. Não consigo descrever. 
Ele olhou pra um dos jovens no chão e disse, meu Deus, ele disse: “comida”. Se abaixou e atacou o rosto do menino comendo o naco que arrancou. Fez isso com todos que já estavam mortos. Quando chegou perto da menina, que balançava a cabeça de um lado para outro, se ajoelhou perto dela e repetiu a maldita palavra. 
Eu me abaixei e vomitei no chão ao meu lado. A menina não gritou sabe? Mas eu sei que a coisa apenas mordeu o ombro dela. Eu sei porque quando aquele monstro saiu alguns minutos do lugar onde as crianças morreram eu aproveitei e fugi, passando por seus corpos. Tinha uma saída para os expositores atrás de onde eles estavam”.
Ele me olhou. Seus olhos estavam tomados pelo terror. Então a expressão deles mudou.
Ele disse: “A senhora tá duvidando de mim? Então pega isso aí. É do guri que foi assassinado naquela noite por uma coisa que eu sempre duvidei que existisse. Eu peguei o aparelho quando passei perto de Elisabete”. 
Ele joga um celular no meu colo. 
“Eu não quero isso comigo. Vou acabar morrendo se descobrirem que tirei esse celular do Centro de Eventos. Eu tenho família. Sabe como é”, encerrou me olhando como se dissesse “se alguém tem que morrer que seja tu, não eu”.
“Eu não sei o que ele filmou. Eu não tive coragem de ver o que eles viram”, termina me olhando envergonhado por sua covardia.
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Depois de conversar com essa testemunha eu voltei para casa, com aquele celular na minha bolsa, que parecia pesar muito mais agora. Confesso que estava muito curiosa para ver o que o rapaz tinha filmado. Mas também estava meio cética. 
O que o vendedor tinha contado era totalmente diferente do que eu tinha visto naquela mesma noite, só que num lugar diferente.
Quando entrei no meu apê, larguei a bolsa numa poltrona e liguei meu notebook. Resolvi tomar um banho e me munir de uma taça de vinho antes de assistir ao filme especial da noite: “Morte na FETRG”. 
É eu tenho um ótimo humor negro, ou ao menos tinha, antes que meu mundo virasse de cabeça para baixo.
Depois sentei calmamente, com as pernas cruzadas no sofá. Retirei o celular da bolsa. O visor estava rachado. Devia ser por causa da queda. Dificilmente o conteúdo teria sido danificado por causa de um impacto pequeno. Tentei ligar o aparelho. Nada aconteceu, com certeza porque a bateria devia ter acabado há muito tempo.
Então, desmontei o celular. Com sorte o guri gravou tudo no mini-cartão SD que geralmente acompanha essas tecnologias. Senão, teria que esperar a bateria recarregar para conseguir ver o conteúdo.
Lá estava o cartão, enfiado entre a bateria, o chip e a capa do celular. Peguei um adaptador e conectei a pequena memória no meu notebook.
Apareceram vários arquivos, com fotos e outras gravações feitas pelo menino no decorrer de cinco meses. Havia cerca de cinco arquivos sem nome, todos gravados no mesmo dia da tragédia na FETRG e no horário aproximado dos eventos. Eu teria que ver um por um.
Cliquei e baixei uma cópia para meu note. “Espero que esse troço não esteja carregado de vírus, senão lá se vão minhas pesquisas”. 
Quando o download terminou, já meio embalada pelo vinho (sou fraca pra bebida alcoólica em qualquer quantidade), cliquei na primeira mídia que enxerguei. Era um pequeno vídeo de uma garota muito bonita, chamada Elisabete. O rapaz filmou alguns minutos dela percorrendo a feira e rindo com mais quatro rapazes. 
Eles deviam ser muito amigos. E, com certeza, todos deviam ter uma quedinha por ela, principalmente o cineasta, porque ele focava praticamente nela o tempo todo, até que ela percebeu, fez cara de brava e, colocando uma mão sobre a câmera embutida no celular, mandou que o guri parasse de persegui-la, senão ele seria acusado de assedio. Todos riam e o vídeo terminou.
Eu não queria ficar vendo aqueles últimos momentos alegres do grupo, até porque também me trazia lembranças tristes, então fui passando os vídeos em câmera acelerada, sem nada ver de relevante até que abri o último arquivo. 
Enquanto botava ele pra rodar acelerado, achando que talvez minha testemunha tivesse se enganado com relação à gravação, derramei mais um pouco de vinho na taça. Quando voltei os olhos meio vesgos pra tela do note, a cena acelerada mostrou um cara grande caminhando rapidamente em direção ao que parecia um corpo no chão. Pausei imediatamente, retrocedi um pouquinho e observei a figura que foi filmada por um par de mãos jovens que tremiam.
Foi aí que entendi o que o comerciante de EPI’s não conseguiu descrever. Era realmente horrível ver aquilo. Retrocedi até o início do vídeo e comecei a assisti-lo para entender o que meus olhos viam, mas meu cérebro se recusava a aceitar.
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O vídeo começou a ser filmado quando a criatura percebeu o que havia sido feito ao Estande da UTMIB. Em primeiro plano se viam os amigos do dono do celular. Eu pensei que, se tivesse sobrevivido, ele bem poderia dar um bom câmera ou cineasta; a noção de tomadas e ângulos dele era excelente.
O homem que trajava a roupa para combate a incêndios olhou para o pseudo terrorista, levando lentamente uma das mãos ao ouvido. Devia ter um comunicador preso à orelha. Depois, meio desajeitado, passou a despir o traje de proteção. Seu corpo ressurgiu envolvido por um uniforme do tipo camuflado, usado pelo Exército ou caçadores de primeira viagem, e seu rosto estava coberto por uma touca ninja. Ainda portava um cinto, com uma arma parecida com uma pistola 9mm no coldre e alguns outros itens que eu não consegui identificar. 
Então, aquele sujeito esquisito começou a andar em direção ao engraçadinho dos rojões sem emitir qualquer som e sem se importar com a correria de alguns visitantes perdidos a sua volta. Enquanto as pessoas que esbarravam no homem não conseguiam impedir sua marcha, este, quando precisava afastar alguém do seu caminho, o empurrava, fazendo com que ele se deslocasse alguns metros de distância, caindo ao chão com uma exclamação de dor. Ele parecia uma rocha, que não podia ser parada nem destruída.
Quando o camuflado estava a poucos metros do estande da Universidade, o terrorista olhou pra ele e gritou, rindo: “Que que é isso?”. O idiota resolveu puxar uma arma do bolso de sua jaqueta, parecia um revolver calibre 32, e mirou. 
Quando o rapaz do atentado disparou sua arma eu senti o impacto da bala entrando no braço esquerdo do sujeito uniformizado. Algo viscoso começou a escorrer do buraco aberto, muito lentamente. Os jovens não se mexeram um milímetro. Parecia que estavam num filme ‘trash’, com péssimos atores, péssimo roteiro e efeitos, mas mesmo assim não podiam evitar olhar o que se desenrolava a sua frente.
Após o impacto do projétil, o bombeiro-soldado, ou vice-versa, estacou, olhou para o braço, olhou para o cara no estande, que parou de rir na mesma hora porque a coisa a sua frente sequer gritou quando foi ferido. O soldado levou a mão ao ouvido, dizendo, numa voz gutural, que arrepiou a minha nuca: “Tiro”.
O babaca começou a rir outra vez por causa do jeito estranho do seu oponente. Ria tanto que chegava a dobrar o corpo. Enquanto o mané gargalhava, nós vimos (era como se agora eu visse tudo pelos olhos daquelas crianças) o soldado sacar a pistola do coldre e mirar na direção do outro. 
O homem disparou quatro tiros rápidos, sucessivos e precisos: acertou uma perna, um braço, depois outra perna e outro braço do terrorista, que caiu de costas, gritando de dor. Quando seu corpo tocou o chão o soldado já estava ao seu lado. Olhou para o corpo estendido, com a cabeça meio inclinada, como um cão esperando ordens do seu dono; se agachou ao lado do seu alvo. Arrancou a touca da cabeça e ficou olhando para ele, enquanto o carinha dizia “Por favor, não... por favor, não... por fa...”
Ele não terminou de implorar. Os seis adolescentes aterrorizados (eu sabia que estavam, porque eu estava, só de olhar para aquela coisa), viram quando o soldado simplesmente falou em tom monocórdio “comida”, enquanto seu corpo era percorrido por tremores incontroláveis. O monstro cravou os dentes no pescoço de sua presa, rasgou a carne uma, duas, três vezes; mastigou-a, e, depois, engoliu. Então, os tremores pararam. 
Um dos garotos virou pro lado, dobrou-se e vomitou. Elisabete tapou os olhos com as mãos e começou a soluçar baixinho. Os demais apenas trocavam olhares de boca aberta. Olhos esbugalhados. A criatura se ergueu, inclinou a cabeça novamente, mirou a pistola no crânio do terrorista e disparou, acertando o meio da testa do defunto.
A cena deveria ter acabado aí. Mas não. Tudo podia ficar pior.
Aquela coisa indescritível percebeu a presença dos adolescentes e os fulminou com o olhar. Ele sentiu seu cheiro? Ouviu algum barulho que eles fizeram? O choro da menina? Não importava. A criatura apenas tocou no ouvido e disse com aquela voz rascante: “Observadores”. 
Eles ouviram o que parecia ser uma resposta exaltada. A pessoa do outro lado parecia que tinha perdido completamente o controle. Mas eles não conseguiram entender o que foi dito para a aberração que os olhava. Apenas as duas últimas sílabas de uma palavra chegaram até o microfone do celular: “...minar”. 
O jovem que parecia ser o líder do grupo gritou pros amigos: “Elisabete, cala a boca. Catem o José do chão e vamos dar o fora daqui. Rápido”. 
Era tarde. Quando o guri disse a última palavra, o soldado já estava urrando assustadoramente, mirando e disparando a arma contra quatro dos seis adolescentes. Eles foram atingidos por disparos certeiros e tombaram contra o chão. O jovem que tentou tirar os amigos da inércia foi atingido em seguida, no peito. Eu senti a bala entrando nele e queimando seu coração. O último disparo acertou Elisabete no peito, e ela também caiu.
Em seus últimos suspiros todos, com certeza, ouviram a criatura se aproximar com seu passo lento-rápido. Eles sabiam o que ia acontecer, mas não podiam evitar o que iria ser feito com seus corpos. O monstro cresceu sobre eles, dizendo “comida”, com certa satisfação. 
Elisabete foi a última. A criatura olhou para ela, agachada ao seu lado. A consciência da jovem ia e voltava, enquanto seu sangue ia deixando seu corpo. Ela só pedia que tudo acabasse logo, que a dor parasse de uma vez. Mas nada acontecia. 
Então, num breve momento de lucidez ela conseguiu ver a cara daquela “coisa”, captada também pela câmera do celular que estava ao lado da cabeça da menina, como o vendedor havia dito. 
Era uma cara horrível, com tons de cinza e azul desbotado, parecia que era tomada pela poeira, com pequenas veias rebentadas por todo lado, indicando pequenas hemorragias; tinha olhos vazios, com íris leitosas; dentes enegrecidos, sem contar o sangue dos que ele tinha devorado, que se espalhava em torno da boca e pelo cabelo opaco, melado pela vida dos mortos. 
Era como se “aquilo” houvesse morrido, mas ainda pudesse se mexer.
Era uma cara que trazia a mente de Elisabete certos filmes que ela tinha visto, mas eu acho que naquela hora ela não conseguia lembrar dos títulos, embora murmurasse sobre isso. 
Ela acabou lembrando de uma palavra dum livro que tinha lido, talvez há pouco, “Como era o nome do autor? Não-sei-o-que-craft...Papel craft... Cada coisa que a gente lembra quando ta morrendo... Como era mesmo a palavra?”, ela murmurava e o celular gravava suas últimas palavras. 
“Ah”, ela falou com certa satisfação: “Inominável.” 
A criatura olhou-a e sussurrou interrogativamente “comida?”. 
Foi a última palavra que ela ouviu. Então, acho que a consciência da menina se apagou definitivamente.
Quando o vídeo terminou eu estava com uma das mãos cobrindo a boca, talvez para não gritar. E eu chorava incontrolavelmente.
Acabei concordando com Elisabete. Aquela criatura era algo realmente inominável.
O que aqueles adolescentes viram foi o mais terrível durante o incidente na FETRG e resultou em seis cadáveres. No entanto, eu soube que somente cinco chegaram ao morgue, totalmente carbonizados, mas já identificados pela UTMIB para que seus parentes pudessem enterrar seus mortos o mais rápido possível.
No enterro, os seis caixões tiveram que ser lacrados para o velório. Por isso, ninguém percebeu que havia um buraco produzido por um objeto perfurante no crânio de cada um dos jovens a serem enterrados. 
O Centro de Eventos foi parcialmente arruinado pelas chamas, mas a UTMIB salvou o que restou com a ajuda do seu agente especializado em combate a incêndios e o protótipo de um revolucionário equipamento. Ambos seriam devidamente apresentados a sociedade riograndina em breve. 
Esta foi a manchete do jornal local que circulou quando amanheceu.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

A FEIRA


“A grande tragédia da ciência: o massacre de uma bela 
hipótese por parte de um horrível fato”. – Thomas Huxley


O que eu não sabia era que, enquanto estávamos nesse lenga-lenga nos destroços semiescuros daquela porcaria de paintboll, fatos muito graves tinham ocorrido na “Feira de Tecnologia do Rio Grande – FETRG”, um dos maiores eventos organizados pela UTMIB para apresentação e negociação das novidades tecnológicas produzidas no Brasil, três horas antes do nosso ‘maravilhoso’ jogo começar.
É como eu sempre digo: “Onde a UTMIB se encontra boa coisa não pode dar”. 
As observações que reproduzo aqui foram fornecidas pelo Professor Robert Svenson, encarregado pela UTMIB de organizar a Feira. Ele prestou depoimento durante o Inquérito Policial aberto por causa do incêndio que ocorreu no Centro de Eventos Municipal, no último dia da Feira daquele ano.

"Na ocasião eu estava muito satisfeito. Foi um privilégio ser escolhido pelo Reitor, Dr. Stein, para ser o organizador da FETRG. O evento deste ano tinha tudo para ser o melhor da última década. Além dos estandes corriqueiros, onde se vendia tecnologia convencional, como os últimos lançamentos na área de vídeo, áudio e games, tanto produzidos a nível nacional, como municipal, havia um campeonato de robôs montados pelas principais faculdades e universidades do país, o que sempre atraia o público jovem e os aficionados por destruição.
Havia sido instalado um novo setor, também, onde se demonstrava as últimas inovações em robótica industrial, criação de andróides, bem como experimentos com nanorobôs para os mais diversos fins, inclusive a área de biomedicina.
Mas a grande atração dessa edição da feira, com certeza, era a UTMIB, por causa do promissor impacto que suas pesquisas em busca de soluções biodegradáveis e politicamente corretas em relação ao meio ambiente, para os mais diversos setores da indústria, bem como na área biomédica, visando possibilitar a manipulação de tecidos vivos e sintéticos, parecia estar produzindo. 
No estande da universidade poderia ser visto os mais diferentes aparatos médicos, robóticos, biológicos, entre outros, que demonstravam alguns experimentos (somente os autorizados, naturalmente) já realizados pela instituição e que tinham maior probabilidade de darem certo.
Eu lembrei, momentaneamente, de certos rumores, que corriam em sites regionais, com um cunho levemente conspiratório, de que a Universidade poderia estar envolvida em alguns experimentos pouco convencionais, com cadáveres e algumas parafernálias tecnológicas e viróticas. No entanto, nada nunca havia sido oficialmente mencionado aos professores e funcionários da Universidade, nem aparecido no jornalismo sério do país. Portanto, eu resolvi que tudo não passava de balela, dei de ombros e me voltei totalmente para o ambiente a minha volta. Eu tinha muitas responsabilidades durante aqueles quinze dias de feira.
Claro que eu percebi dois ou três indivíduos conhecidos em Rio Grande por estas denúncias, que somente circulavam pela internet, rondando o estande da universidade. A sra. Já viu algumas das páginas deles? Não? Tudo de muito mal gosto, realmente não sei como alguém poderia acreditar naquelas baboseiras.
Enfim, eu pensei: “O que não existe nos jornais, não existe no mundo”, parodiando o chavão do Direito, curso no qual eu era graduado, para afastar qualquer questão de consciência ao permitir que a UTMIB trouxesse para o meio de uma multidão alguns experimentos biológicos que bem poderiam ser perigosos, caso um frasco quebrasse. Preferi confiar no sistema de segurança montado pela instituição, que, além de vários seguranças, não permitia que algum indivíduo se aproximasse dos expositores com tais materiais, composto por um sistema de alarme que disparava quando um ser vivo transpusesse cinco metros de distância do material biológico. 
Caso isso ocorresse, quase imediatamente um segurança de cerca de 2 metros de altura e 100 quilos de músculos pulava em cima do desavisado e o imobilizava, não sem antes quase arrancar um de seus membros. Pelo menos assim tinha ocorrido na demonstração promovida pela universidade, tanto para os organizadores da feira, quanto no primeiro dia do evento, justamente para já preparar os visitantes, caso tentassem qualquer gracinha. 
Eu sabia que o sistema era totalmente confiável. Eu preferi acreditar nisso.
Restava saber se tal esquema funcionaria com a mesma eficiência em caso de incêndio, algum acidente ou outro fato que fizesse os visitantes entrarem em pânico e saírem em disparada pelo local do evento. 
No entanto, eu nem sequer cogitei sobre a possibilidade de alguma dessas situações ocorrerem. Pareciam totalmente improváveis. Afinal, nunca haviam ocorrido em anos anteriores, não seria neste ano, em que eu estava como diretor do evento mais importante da cidade, que iriam ocorrer. Eu tinha sido muito cuidadoso.
Mas, às vezes, o improvável é justamente o que acaba ocorrendo”, finalizou o Professor Robert pensativamente.
Então, o Inquérito foi arquivado muito mais rápido que o tempo que os bombeiros levaram para apagar as chamas. Os peritos concluíram, em menos de 24h, que tinha sido um acidente, um curto na fiação elétrica antiga do local, que nem autorização do Corpo de Bombeiros tinha para sediar eventos da magnitude da FETRG.
Simplesmente ignoraram que haviam outros interesses em jogo, inclusive o pequeno grupo radical mencionado pelo Professor Robert, grupo que estava ameaçando a Universidade por causa de algumas de suas pesquisas mais controvertidas e que não eram de conhecimento público.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O PAINTBOLL: PARTE I

O PAINTBOLL: PARTE I

“Hay que endurecerse [....]” – Che Guevara.

Todo mundo sabe: qualquer evento tem um início, uma ação, que provoca uma série de reações ou consequências. 
Eu sei que o que está ocorrendo em Rio Grande começa com a UTMIB. Eu sei, também, que começou antes que eu caísse de paraquedas no meio das consequências que o Reitor dessa Universidade desencadeou.
E pior: eu ainda não obtive todos os dados, não consegui reunir todos os documentos que andam por aí, perdidos, ou resgatados pela corja que trabalha para o pseudo Dr. Vitor Stein. 
Por isso vou continuar minhas investigações, mesmo sabendo que isso pode me levar a ser encontrada com a boca cheia de formiga num dos matagais que circundam o Saco da Mangueira.
Como eu disse, a verdade tem mais maldade do que horror. 
E é isso o que realmente pode acabar com a pessoa. Porque o horror imobiliza só por um tempo. Mas a maldade acaba matando de vez a humanidade de alguém, impedindo a reação necessária e proporcional.
Por isso preciso contar quando, onde e como eu entrei nesse rolo, até porque vai me ajudar a manter um pouco de sanidade e, quem sabe, organizar melhor meus passos. Vai me permitir ‘chorar’ pelo que perdi, sem que eu precise ficar arrasada com os fatos. Então, foi assim que tudo teve início para mim.
Foi mais ou menos há um ano. 
Eu e grupo de amigos e alguns nem tão amigos sempre combinávamos uma partida de Paintboll a cada quinze dias, num campo que foi montado numa Indústria de Pescados desativada. Os prédios estavam todos praticamente em ruínas, o que foi bem aproveitado por um conhecido meu para a instalação do campo. 
O jogo ocorria sempre numa sexta e quando era certo que todos os participantes teriam folga no sábado. A partida iniciava às 22h e terminava à meia-noite. O grupo era formado por policiais, enfermeiros, estudantes universitários, médicos ou comerciantes, profissionais que tinham muita coisa para carregar nos ombros e precisavam de uma atividade assim pra relaxar.
Geralmente era composto pelo mesmo bando de conhecidos. Às vezes, alguém trazia uma pessoa nova para participar. O número era basicamente o mesmo: 15 pessoas, que se revezavam durante a partida.
Na sexta em que tudo desandou, Beto, que também era o ‘feliz’ dono do empreendimento, resolveu combinar a partida para a meia-noite. 
A conversa antes da partida foi mais ou menos assim:
“- Realmente eu não sei porque o Beto tinha que inventar essa partida logo nesse horário. Além de frio, está uma umidade terrível e a cerração da lagoa, pra variar, já ta tomando conta de tudo!
- Para de resmungar, Clara. Quer coisa melhor do que esse clima pra tornar o paintboll mais emocionante? Tu ta parecendo uma menininha, como sempre, nem parece que é da polícia. O Beto foi muito criativo quando inventou uma partida a essa hora e com esse tempo. Assim, põe um pouco de adrenalina no jogo. Senão fica tudo sempre igual.
- Não to resmungando. Só acho uma ideia idiota. Parece aqueles filmes americanos de quinta categoria; filmes tipo ‘trash’. E não sou uma menininha, Carlos. Senão nunca entraria nas roubadas que vocês dois inventam. Duvido que o resto da turma venha. 
- Xi, tu perderia a aposta. Olha lá, a turma tá chegando. Oi, Beto. Estamos loucos pra te zoar de vez. Essa partida é pra ontem ou pra hoje?
- Já vai começar, Carlos. Eu já dividi os times. Vai ser como sempre. Mas antes tenho que avisar que tem uma surpresa no jogo. Sabe como é: pra ficar mais real. 
- Lá vem ele de novo, com “mais real”! Vamos duma vez com isso, preciso me exercitar, mas também preciso dormir.
- Sempre reclamando, Clara. Mas garanto que hoje isso não vai acontecer. Essa partida vai entrar pra história, graças a mim, o Beto.
- Quero só ver. E então, qual é a surpresa?
- Pessoal, façam uma rodinha aqui. Eu falei rodinha, não retângulo. Agora sim. O negócio é o seguinte. Uns caras conhecidos meus pediram pra que eu deixasse que um grupo, que tá fazendo uma oficina pra um filme, se tornassem nossos alvos móveis, sabe como é, pra ver se eles já pegaram o jeito dos personagens. Então, hoje, além da bandeira, temos que “detonar” o maior número possível de atores que encontrarmos pelo percurso.
- Sei, sei; mais uma invenção maluca. Tudo bem. E como vamos saber quem são eles nessa escuridão? Afinal podemos acabar acertando um companheiro de time.
- Seria uma perda justificável na “guerra”. Mas, não vai acontecer. Nós estaremos com os uniformes de praxe, e eles com as roupas dos personagens por cima de roupas de proteção. Então não tem como a gente se enganar. Só não posso dar mais detalhes porque senão o elemento surpresa vai por água abaixo. Podemos começar, então.
- Mas...
- Nada de mas, Clara. Sempre inventando um problema. Será como sempre, apenas vamos encontrar alguns elementos que não são dos times e caçá-los até alcançar o alvo principal. O grupo que eliminar mais inimigos, detonar mais alvos móveis e chegar à bandeira em primeiro ganha. É isso. Prontos? Então que comece a “matança””.

Continua...

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

QUEM EU SOU

"Na vingança e no amor a mulher é mais bárbara do que o homem."
Friedrich Nietzsche

Com certeza, eu deveria dizer que sou uma superespecialista em sobrevivência, conhecedora de várias artes marciais e mestre no uso de diferentes armas, desde armas brancas até armamento pesado, do tipo espingardas de grosso calibre, fuzis, metralhadoras, etc.
Eu também deveria dizer que, apesar do medo que sinto, aprendi a controlá-lo melhor do que um jedi, deslocando-o para um canto obscuro do cérebro, me tornando capaz de realizar qualquer ato de superação humana e ir até além disso para acabar com os meus inimigos e os monstros que eles criaram.
Mas isso seria mentira.
Isso seria enganar a mim mesma e as pessoas que eu quero, que eu preciso que leiam o que vou contar aqui.
Por isso eu admito: eu tenho raiva, mas, na maioria das vezes, tenho tanto medo que fico paralisada, tremendo incontrolavelmente (aliás, acho que desde que tudo começou eu não parei mais de tremer. Acho mesmo que vou tremer até o dia em que tudo acabar ou, na pior das hipóteses, eu acabar morrendo), quase deixando que eles me matem por causa disso.
Um alerta: as séries de TV? G.A. Romero? O Livro dos Mortos? Tudo isso até mostra algumas coisas que podem acontecer. 
Mas a realidade é muito pior, porque é simples.
A verdade, quando se trata de inimigos e monstros, não é horripilante, é apenas recheada de maldade.
Então, a pergunta que eu não deveria permitir é: Quem sou?
Só uma mulher, com pouco mais de 1.60m de altura, cabelos castanhos escuros, levemente encaracolados, peso normal, passando dos 30 anos, policial civil em Rio Grande.
Eu sou Clara. 
Eu perdi tudo. 
Meu único objetivo: 
Destruir a UTMIB.