O INTERROGATÓRIO

-Sim, eu vi quando tudo aconteceu. Foi uma coisa estúpida, sabe?  De repente, tudo virou do avesso. Foi horrível.
-Eu entendo, sr., sr... Como é mesmo seu nome?
-Eu não sei se devo dizer. Ainda estou apavorado.
-Compreensível diante da situação, sr. Mas, se o sr. deseja que tudo seja averiguado, precisamos primeiramente identificar o sr., tentar localizar as provas que o sr. enviou ao seu amigo, enfim, as coisas de praxe.
-As coisas de praxe. Olha só, estou cansado das coisas de praxe! Eu tentei avisar todo mundo, inclusive alertei as autoridades de lá e ninguém quis me ouvir. Eu fui torturado cara. Torturado até quase morrer! E tu vem me falar das coisas de praxe?
“Suspiro. O ouvinte se recosta na cadeira e assume sua cara de mais profunda compaixão. 
Erro terrível. Quem tem compaixão tende a se aproximar fisicamente da pessoa ferida, debruçando-se sobre a mesa; olha em seus olhos, ou os baixa em reflexão e sempre, sempre, usa a primeira pessoa para demonstrar que é um ser humano como aquele  que está sofrendo”, eu penso, enquanto vejo o inspetor ‘conversar’ com o ‘suspeito’ através do vidro escuro da sala de observação. Gomes nunca foi um bom interrogador”.
-Sr., como eu disse, estamos aqui para ajudá-lo. Entendemos sua situação, somos solidários, por isso estamos escutando a sua história, apesar dela parecer fantástica demais...
-Tu está me dizendo que eu inventei tudo isso? Que eu sou psicótico ou coisa parecida?
“A agressividade do interrogado parece aumentar com essa frase, e faz Gomes se encolher um pouquinho na cadeira. É, ele é covarde também.
Outro erro fatal.
O interrogado vai captando todos esses movimentos imperceptíveis e as pequenas reações que transparecem no rosto do homem a sua frente. Ele já sabe que não vai obter ajuda aqui.
Eu quase posso quase um balãozinho com os pensamentos do ‘suspeito’ sobrevoando sua cabeça: "Provavelmente eles foram informados da situação. Estão me mantendo aqui apenas para dar tempo para os outros chegarem. Eu tenho que sair daqui com urgência.".
-Sr., acalme-se, senão não conseguiremos ajudá-lo. Vamos fazer o seguinte: vou trazer um café para o sr. tomar e deixá-lo refletir por cinco minutos. Um descanso será bom para o sr.
“Ele balança a cabeça em concordância. Está muito cansado, mas seu cérebro está trabalhando a mil para encontrar uma saída dali. Mas sinto que a desesperança está tomando conta dele. Ele pensa em deixar que os outros o peguem para acabar com essa porcaria toda.
‘Mas aí... aí eles vão vencer, cara. Muita gente poderá acabar morrendo. Tu não pode concordar com isso’, eu tento transmitir esse pensamento para ele, o que não vai acontecer, claro”.
-Em vez de café, não pode ser uma coca? Faz um tempão que não tomo uma. Pode ser de um litro? 
-Não temos coca aqui na Delegacia sr. - argumenta o interrogador.
-Puxa, tu mesmo falou que eu preciso de um descanso. Quem sabe algum colega pode comprar naquele bar imundo que tem ali na esquina. Não me importo. Só preciso desse favor, companheiro, depois disso acho que vou conseguir falar melhor. 
“O ‘suspeito’ argumenta com ar de súplica. Acho que ele teve uma ideia. O investigador o observa. Ele descansa a cabeça nos braços apoiados na mesa a sua frente e suspira. O policial fica pensativo por alguns segundos. Eu sorrio. Gomes também não é muito inteligente”.
-Ok. Vou providenciar, sr. Creio que isso vai ajudá-lo mesmo.
“E sai da sala devagar. O futuro preso houve o estalo da chave trancando a sala em que se encontra.
É, meu caro. Só em filme isso da porta ser deixada aberta acontece. Tu te sente estúpido, né? O homem acaba deitando a cabeça novamente nos braços. Está conformado. Se tiver que morrer, que assim seja. Parece que a UTMIB conseguiu vencê-lo. 
O cansaço faz com que ele adormeça rapidamente.
Eu saio da sala de observação. Destranco a porta. Gomes deixou a chave na fechadura, como sempre. Entro devagar na sala. O cara está dormindo. Faço o que é preciso e me retiro. O único barulho que faço é quando fecho a porta. Ela sempre range um pouquinho, droga. Volto rapidamente para a sala de observação.
Ele escutou o barulho que fiz porque está olhando ao redor, com seus olhos pesados e anuviados pelo sono. A porta continua fechada. Ele suspira.
É quando percebe o casaco surrado e com capuz sobre a mesa. Ao lado o bilhete que rascunhei rapidamente e com uma letra quase ilegível. 
Espero que ele entenda que deve fugir.
Agora.
Ele pula da cadeira.
-Mas quem... - ele falou em voz alta, se aproximando da saída . Testa a fechadura e puxa a porta alguns milímetros. 
Balãozinho se formando outra vez: ‘Se alguém daqui está me ajudando é porque realmente estou em perigo.’ Ele abre uma fresta e espia para fora. Aparentemente, ninguém no corredor. 
Um silêncio sepucral nesta área é comum por causa dos interrogatórios e da forma como eles são realizados. Quase nada se escuta do lado de fora. Somente nas salas de observação. Padrão construtivo da UTMIB, o que sempre me deixou indignada.
O cara fecha a porta. Enfia o bilhete no bolso da calça de brim surrada. Esperto. Não vai deixar pistas que possam levar a quem quer que tenha bancado o bom samaritano, no caso, eu, a idiota da Clara. Veste o casaco velho e mal cheiroso o mais rápido que pode. Abre a porta novamente e olha para os dois lados do corredor.
Finalmente, o cara desliza para fora da sala, fechando a porta atrás de si. Ouço o estalo da chave girando na fechadura. Eu ouço ele passar pela sala em que estou. Espero alguns segundo e saio dali também, de forma calma e discreta para não chamar a atenção. Vejo quando ele chega na sala onde as mesas dos policiais estão dispostas, com vários documentos em cima delas. É o lugar onde os policiais atendem as pessoas que se dirigem a Delegacia.
Há um pequeno caos no local. Alguém diz que o Arquivo está pegando fogo. Alguns policiais começam a correr para o local, acionando o alarme de incêndio e pedindo para as pessoas que estavam aguardando atendimento saírem para a rua com calma e ordenadamente.
É, uma ou duas pequenas bombas de gás sempre causam algum efeito produtivo.
Vejo o ‘fugitivo’ colocar o capuz sobre a cabeça e se juntar a um pequeno grupo que deixando o local e sair do prédio o mais discretamente que pode.
Vou até a porta de saída. Ele ruma imediatamente para a saída do pátio da Delegacia. Alcança a rua em poucos e suados passos. Devia estar muito amedrontado e nervoso.
Eu retorno para sala em que trabalho, perto do delegado. Então, cinco minutos depois, eu ouço Gomes”.
-Mas o que está ocorrendo aqui? – “Ele grita para ser ouvido, apesar da confusão já ter diminuído.
Ouço um policial militar responder que havia sido um falso alarme de incêndio. Ainda estavam tentando descobrir o que tinha acontecido.
Som de vidro quebrado em mil pedaços. Sorrio, devia ser a garrafa de coca. Era uma daquelas raras garrafas de vidro. Quem mandou tu ser tão metódico em atender o pedido do teu ‘suspeito’, Gomes? Tu nunca sabe quando ser menos zeloso".
-Droga. – “ele fala. Escuto ele começar a se dirigir para a sala onde tinha deixado um homem estranho, com um relato bizarro. Resolvo espiar, só para ver a cara dele.
Gomes testa a porta. Estava trancada. Encosta o ouvido nela. Balão na cabeça do inspetor: "Deve ter dormido", e sinto seu alívio. Resolve retornar para a sala. Eu me afasto rapidamente e fico numa mesa atrás de uma viga de sustentação.
Então eu vejo Gomes se abaixar no final do corredor e pegar um objeto. Era uma chave. A chave da sala de interrogatório, tenho certeza. O bolso do casaco devia estar furado, droga. Ele retorna em direção a sala de interrogatório.
O inspetor encontrou a sala às moscas, porque voltou correndo com uma cara endurecida pela frustração”. 
-Cadê o cara que estava na sala 2B? – “ele perguntou para o policial militar que havia contado sobre o incêndio”.
-Que cara? 
-O cara que eu estava interrogando. Na sala 2B. Tu sabe, nós pegamos ele ontem a noite. Cadê ele?
-Ué. Está na sala, com certeza. 
-Não, não está. – “arfou entre dentes, mostrando a chave. 
O policial apenas encolheu os ombros como se dissesse: ‘Então não sei’. E se voltou para os colegas que estavam conversando sobre os fatos ocorridos na Delegacia.
Gomes se dirige para uma mesa e disca um número no telefone. Ouço ele dizer:
-Ele conseguiu fugir. – “Após alguns segundo ouvindo o que, certamente, deve ter incluído uma carrada de desaforos e instruções, o inspetor diz:
-Pode deixar. E outra coisa. Ele fugiu com a ajuda de alguém aqui de dentro. Não tenho certeza, mas acho que sei quem é.
Ouviu por mais alguns segundos.
-Pode deixar. Vou resolver os dois problemas rapidamente. – Ele deposita o telefone no gancho e fica olhando o vazio, concentrado e determinado. Nisso ele é bom, tenho que reconhecer.
É, Clara, agora guria tu está na lista negra de José Gomes, o policial civil mais cruel da cinza gris”.

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