domingo, 12 de janeiro de 2014

O INOMINÁVEL

“- Não é – oh! Não é uma visão deplorável?” – 
Edgar Allan Poe.


Mas a pior coisa que ouvi chegou aos meus ouvidos através de uma testemunha ocular, comerciante de Equipamentos de Proteção Individual, 35 anos, sobrevivente da tragédia que acabou com a FETRG e parte do Centro de Eventos, porque conseguiu se esconder atrás de caixas de papelão em seu estande. Eu omiti sua identidade por segurança. Ele é uma peça chave para minha investigação.

“Eu já havia participado em outras edições da FETRG e tudo sempre foi muito organizado, tranquilo. Era improvável que algo tão ruim pudesse acontecer. Sabe, o sistema de segurança sempre tinha sido infalível.” Era possível ver a incredulidade, misturada com o terror, em seus olhos escuros.
“Mas, o improvável aconteceu. Parecia que alguém pressentiu algo no ar, mais do que viu. Imagino essa pessoa sentindo um arrepio de medo percorrer seu corpo, o suor escorrer por sua espinha. E foi esse cheiro que se espalhou pelo ambiente e colocou a multidão em polvorosa.
O resultado foi pânico geral. Gente desesperada, correndo para todos os lados. Algumas foram pisoteadas, ocasionando braços, pernas ou costelas quebrados. Crianças gritavam pelos pais, que procuravam seus filhos ou tentavam protegê-los do que estava ocorrendo, embora ninguém conseguisse identificar exatamente o que era. Parecia uma tropa de gado desembestado.
Luzes vermelhas começaram a piscar; o som de alarme explodiu nos ouvidos da multidão. As pessoas dispararam para as saídas de emergência. Som de vidros quebrados, sensação de que alguma coisa estava queimando; indício de fumaça num dos cantos afastado do Centro de Eventos.
Ninguém se importava com nada. Só em sair da feira o mais rápido possível, independentemente do que tivesse que fazer para conseguir isso. O terror induziu os visitantes a correr para todos os lados, sem saber exatamente para onde ir, e sem se preocupar com o que ocorria. As pessoas simplesmente perceberam o perigo e passaram a agir instintivamente.
Tudo isso porque uma tomada aparentemente entrou em combustão “espontânea”. Nela estavam ligados três computadores do estande da UTMIB. As fagulhas acabaram provocando um início de fogo no estande mais próximo, onde havia uma exposição sobre combustível biodegradável, com pequeno maquinário que demonstrava como o produto era produzido e pequenos galões cheios do líquido altamente inflamável. Se o fogo chegasse no combustível iria se alastrar com rapidez.
Mas o pior não foi a zoeira geral, a multidão descontrolada, o princípio de incêndio que gerou o pânico, os alarmes disparados, nem os ossos quebrados. O pior foi o que aconteceu com seis adolescentes que passeavam pela feira.
Eu estava agachado dentro do meu estande, atrás de umas caixas de papelão. Assim como eu, os guris deviam ter um pouco de sangue frio, porque não se misturaram na confusão. Ficaram num canto, aguardando o local esvaziar um pouco para saírem em segurança. 
Eu percebi que eles notaram alguma coisa estranha e acompanhei o olhar deles. Era uma sombra se esgueirando atrás dos estandes. Por fim, essa ‘sombra’ saiu do canto escuro perto da parede e se aproximou do foco do incêndio. Pelo que consegui ver vestia uma roupa laranja, aparentemente isolante, com o logotipo e a sigla da Universidade, e trazia nas costas um equipamento estranho que direcionou para o local, aparentemente para apagar o fogo. 
Foi nessa hora que um engraçadinho aproximou-se demais de um dos recipientes hiper-protegidos no estande da UTMIB, fazendo com que o alarme de segurança soasse freneticamente. Mas, os seguranças gigantescos não se apresentaram para defender o local. Estranhamente haviam desaparecido. 
O idiota gritou “Abaixo a UTMIB” e soltou dois rojões dentro do estande da Universidade. Eu notei que os jovens ficaram muito confusos não só com o que tinha sido feito com o estande da UTMIB, mas também com a reação do sujeito com roupa de proteção. Eu não conseguia ver o cara direito de onde estava, mas percebi que um dos guris começou a filmar tudo com seu celular. 
Então ouvi quatro tiros serem disparados sucessivamente. Me encolhi ainda mais atrás das caixas de papelão. Após alguns segundos, que mais pareceram um século, eu levantei a cabeça e vi um menino vomitando e um dos guris gritou que eles deveriam sair dali. O do celular continuava filmando olhando pra frente, meio que paralisado, como se tivesse visto uma coisa do outro mundo.
Quando dois dos meninos começaram a se mexer para puxar os colegas para irem embora, vieram novos disparos. Um a um os meninos foram caindo sem vida no chão. O rapaz do celular foi um dos últimos a desabar; seu aparelho deslizou pelo chão e ficou a poucos centímetros da cabeça da sua amiga que foi a última a ser alvejada, tombando no piso, onde ficou murmurando umas coisas sem sentido.
Foi aí que eu vi a ‘sombra’ caminhando de forma meio desengonçada em direção aos corpos daquelas crianças. Agora, não sei como, estava com uma roupa camuflada; ele trazia uma touca preta na mão. Quando chegou perto do primeiro corpo, eu vi sua cara. Mesmo de perfil, era horrível. Não consigo descrever. 
Ele olhou pra um dos jovens no chão e disse, meu Deus, ele disse: “comida”. Se abaixou e atacou o rosto do menino comendo o naco que arrancou. Fez isso com todos que já estavam mortos. Quando chegou perto da menina, que balançava a cabeça de um lado para outro, se ajoelhou perto dela e repetiu a maldita palavra. 
Eu me abaixei e vomitei no chão ao meu lado. A menina não gritou sabe? Mas eu sei que a coisa apenas mordeu o ombro dela. Eu sei porque quando aquele monstro saiu alguns minutos do lugar onde as crianças morreram eu aproveitei e fugi, passando por seus corpos. Tinha uma saída para os expositores atrás de onde eles estavam”.
Ele me olhou. Seus olhos estavam tomados pelo terror. Então a expressão deles mudou.
Ele disse: “A senhora tá duvidando de mim? Então pega isso aí. É do guri que foi assassinado naquela noite por uma coisa que eu sempre duvidei que existisse. Eu peguei o aparelho quando passei perto de Elisabete”. 
Ele joga um celular no meu colo. 
“Eu não quero isso comigo. Vou acabar morrendo se descobrirem que tirei esse celular do Centro de Eventos. Eu tenho família. Sabe como é”, encerrou me olhando como se dissesse “se alguém tem que morrer que seja tu, não eu”.
“Eu não sei o que ele filmou. Eu não tive coragem de ver o que eles viram”, termina me olhando envergonhado por sua covardia.
*******************************

Depois de conversar com essa testemunha eu voltei para casa, com aquele celular na minha bolsa, que parecia pesar muito mais agora. Confesso que estava muito curiosa para ver o que o rapaz tinha filmado. Mas também estava meio cética. 
O que o vendedor tinha contado era totalmente diferente do que eu tinha visto naquela mesma noite, só que num lugar diferente.
Quando entrei no meu apê, larguei a bolsa numa poltrona e liguei meu notebook. Resolvi tomar um banho e me munir de uma taça de vinho antes de assistir ao filme especial da noite: “Morte na FETRG”. 
É eu tenho um ótimo humor negro, ou ao menos tinha, antes que meu mundo virasse de cabeça para baixo.
Depois sentei calmamente, com as pernas cruzadas no sofá. Retirei o celular da bolsa. O visor estava rachado. Devia ser por causa da queda. Dificilmente o conteúdo teria sido danificado por causa de um impacto pequeno. Tentei ligar o aparelho. Nada aconteceu, com certeza porque a bateria devia ter acabado há muito tempo.
Então, desmontei o celular. Com sorte o guri gravou tudo no mini-cartão SD que geralmente acompanha essas tecnologias. Senão, teria que esperar a bateria recarregar para conseguir ver o conteúdo.
Lá estava o cartão, enfiado entre a bateria, o chip e a capa do celular. Peguei um adaptador e conectei a pequena memória no meu notebook.
Apareceram vários arquivos, com fotos e outras gravações feitas pelo menino no decorrer de cinco meses. Havia cerca de cinco arquivos sem nome, todos gravados no mesmo dia da tragédia na FETRG e no horário aproximado dos eventos. Eu teria que ver um por um.
Cliquei e baixei uma cópia para meu note. “Espero que esse troço não esteja carregado de vírus, senão lá se vão minhas pesquisas”. 
Quando o download terminou, já meio embalada pelo vinho (sou fraca pra bebida alcoólica em qualquer quantidade), cliquei na primeira mídia que enxerguei. Era um pequeno vídeo de uma garota muito bonita, chamada Elisabete. O rapaz filmou alguns minutos dela percorrendo a feira e rindo com mais quatro rapazes. 
Eles deviam ser muito amigos. E, com certeza, todos deviam ter uma quedinha por ela, principalmente o cineasta, porque ele focava praticamente nela o tempo todo, até que ela percebeu, fez cara de brava e, colocando uma mão sobre a câmera embutida no celular, mandou que o guri parasse de persegui-la, senão ele seria acusado de assedio. Todos riam e o vídeo terminou.
Eu não queria ficar vendo aqueles últimos momentos alegres do grupo, até porque também me trazia lembranças tristes, então fui passando os vídeos em câmera acelerada, sem nada ver de relevante até que abri o último arquivo. 
Enquanto botava ele pra rodar acelerado, achando que talvez minha testemunha tivesse se enganado com relação à gravação, derramei mais um pouco de vinho na taça. Quando voltei os olhos meio vesgos pra tela do note, a cena acelerada mostrou um cara grande caminhando rapidamente em direção ao que parecia um corpo no chão. Pausei imediatamente, retrocedi um pouquinho e observei a figura que foi filmada por um par de mãos jovens que tremiam.
Foi aí que entendi o que o comerciante de EPI’s não conseguiu descrever. Era realmente horrível ver aquilo. Retrocedi até o início do vídeo e comecei a assisti-lo para entender o que meus olhos viam, mas meu cérebro se recusava a aceitar.
*******************************

O vídeo começou a ser filmado quando a criatura percebeu o que havia sido feito ao Estande da UTMIB. Em primeiro plano se viam os amigos do dono do celular. Eu pensei que, se tivesse sobrevivido, ele bem poderia dar um bom câmera ou cineasta; a noção de tomadas e ângulos dele era excelente.
O homem que trajava a roupa para combate a incêndios olhou para o pseudo terrorista, levando lentamente uma das mãos ao ouvido. Devia ter um comunicador preso à orelha. Depois, meio desajeitado, passou a despir o traje de proteção. Seu corpo ressurgiu envolvido por um uniforme do tipo camuflado, usado pelo Exército ou caçadores de primeira viagem, e seu rosto estava coberto por uma touca ninja. Ainda portava um cinto, com uma arma parecida com uma pistola 9mm no coldre e alguns outros itens que eu não consegui identificar. 
Então, aquele sujeito esquisito começou a andar em direção ao engraçadinho dos rojões sem emitir qualquer som e sem se importar com a correria de alguns visitantes perdidos a sua volta. Enquanto as pessoas que esbarravam no homem não conseguiam impedir sua marcha, este, quando precisava afastar alguém do seu caminho, o empurrava, fazendo com que ele se deslocasse alguns metros de distância, caindo ao chão com uma exclamação de dor. Ele parecia uma rocha, que não podia ser parada nem destruída.
Quando o camuflado estava a poucos metros do estande da Universidade, o terrorista olhou pra ele e gritou, rindo: “Que que é isso?”. O idiota resolveu puxar uma arma do bolso de sua jaqueta, parecia um revolver calibre 32, e mirou. 
Quando o rapaz do atentado disparou sua arma eu senti o impacto da bala entrando no braço esquerdo do sujeito uniformizado. Algo viscoso começou a escorrer do buraco aberto, muito lentamente. Os jovens não se mexeram um milímetro. Parecia que estavam num filme ‘trash’, com péssimos atores, péssimo roteiro e efeitos, mas mesmo assim não podiam evitar olhar o que se desenrolava a sua frente.
Após o impacto do projétil, o bombeiro-soldado, ou vice-versa, estacou, olhou para o braço, olhou para o cara no estande, que parou de rir na mesma hora porque a coisa a sua frente sequer gritou quando foi ferido. O soldado levou a mão ao ouvido, dizendo, numa voz gutural, que arrepiou a minha nuca: “Tiro”.
O babaca começou a rir outra vez por causa do jeito estranho do seu oponente. Ria tanto que chegava a dobrar o corpo. Enquanto o mané gargalhava, nós vimos (era como se agora eu visse tudo pelos olhos daquelas crianças) o soldado sacar a pistola do coldre e mirar na direção do outro. 
O homem disparou quatro tiros rápidos, sucessivos e precisos: acertou uma perna, um braço, depois outra perna e outro braço do terrorista, que caiu de costas, gritando de dor. Quando seu corpo tocou o chão o soldado já estava ao seu lado. Olhou para o corpo estendido, com a cabeça meio inclinada, como um cão esperando ordens do seu dono; se agachou ao lado do seu alvo. Arrancou a touca da cabeça e ficou olhando para ele, enquanto o carinha dizia “Por favor, não... por favor, não... por fa...”
Ele não terminou de implorar. Os seis adolescentes aterrorizados (eu sabia que estavam, porque eu estava, só de olhar para aquela coisa), viram quando o soldado simplesmente falou em tom monocórdio “comida”, enquanto seu corpo era percorrido por tremores incontroláveis. O monstro cravou os dentes no pescoço de sua presa, rasgou a carne uma, duas, três vezes; mastigou-a, e, depois, engoliu. Então, os tremores pararam. 
Um dos garotos virou pro lado, dobrou-se e vomitou. Elisabete tapou os olhos com as mãos e começou a soluçar baixinho. Os demais apenas trocavam olhares de boca aberta. Olhos esbugalhados. A criatura se ergueu, inclinou a cabeça novamente, mirou a pistola no crânio do terrorista e disparou, acertando o meio da testa do defunto.
A cena deveria ter acabado aí. Mas não. Tudo podia ficar pior.
Aquela coisa indescritível percebeu a presença dos adolescentes e os fulminou com o olhar. Ele sentiu seu cheiro? Ouviu algum barulho que eles fizeram? O choro da menina? Não importava. A criatura apenas tocou no ouvido e disse com aquela voz rascante: “Observadores”. 
Eles ouviram o que parecia ser uma resposta exaltada. A pessoa do outro lado parecia que tinha perdido completamente o controle. Mas eles não conseguiram entender o que foi dito para a aberração que os olhava. Apenas as duas últimas sílabas de uma palavra chegaram até o microfone do celular: “...minar”. 
O jovem que parecia ser o líder do grupo gritou pros amigos: “Elisabete, cala a boca. Catem o José do chão e vamos dar o fora daqui. Rápido”. 
Era tarde. Quando o guri disse a última palavra, o soldado já estava urrando assustadoramente, mirando e disparando a arma contra quatro dos seis adolescentes. Eles foram atingidos por disparos certeiros e tombaram contra o chão. O jovem que tentou tirar os amigos da inércia foi atingido em seguida, no peito. Eu senti a bala entrando nele e queimando seu coração. O último disparo acertou Elisabete no peito, e ela também caiu.
Em seus últimos suspiros todos, com certeza, ouviram a criatura se aproximar com seu passo lento-rápido. Eles sabiam o que ia acontecer, mas não podiam evitar o que iria ser feito com seus corpos. O monstro cresceu sobre eles, dizendo “comida”, com certa satisfação. 
Elisabete foi a última. A criatura olhou para ela, agachada ao seu lado. A consciência da jovem ia e voltava, enquanto seu sangue ia deixando seu corpo. Ela só pedia que tudo acabasse logo, que a dor parasse de uma vez. Mas nada acontecia. 
Então, num breve momento de lucidez ela conseguiu ver a cara daquela “coisa”, captada também pela câmera do celular que estava ao lado da cabeça da menina, como o vendedor havia dito. 
Era uma cara horrível, com tons de cinza e azul desbotado, parecia que era tomada pela poeira, com pequenas veias rebentadas por todo lado, indicando pequenas hemorragias; tinha olhos vazios, com íris leitosas; dentes enegrecidos, sem contar o sangue dos que ele tinha devorado, que se espalhava em torno da boca e pelo cabelo opaco, melado pela vida dos mortos. 
Era como se “aquilo” houvesse morrido, mas ainda pudesse se mexer.
Era uma cara que trazia a mente de Elisabete certos filmes que ela tinha visto, mas eu acho que naquela hora ela não conseguia lembrar dos títulos, embora murmurasse sobre isso. 
Ela acabou lembrando de uma palavra dum livro que tinha lido, talvez há pouco, “Como era o nome do autor? Não-sei-o-que-craft...Papel craft... Cada coisa que a gente lembra quando ta morrendo... Como era mesmo a palavra?”, ela murmurava e o celular gravava suas últimas palavras. 
“Ah”, ela falou com certa satisfação: “Inominável.” 
A criatura olhou-a e sussurrou interrogativamente “comida?”. 
Foi a última palavra que ela ouviu. Então, acho que a consciência da menina se apagou definitivamente.
Quando o vídeo terminou eu estava com uma das mãos cobrindo a boca, talvez para não gritar. E eu chorava incontrolavelmente.
Acabei concordando com Elisabete. Aquela criatura era algo realmente inominável.
O que aqueles adolescentes viram foi o mais terrível durante o incidente na FETRG e resultou em seis cadáveres. No entanto, eu soube que somente cinco chegaram ao morgue, totalmente carbonizados, mas já identificados pela UTMIB para que seus parentes pudessem enterrar seus mortos o mais rápido possível.
No enterro, os seis caixões tiveram que ser lacrados para o velório. Por isso, ninguém percebeu que havia um buraco produzido por um objeto perfurante no crânio de cada um dos jovens a serem enterrados. 
O Centro de Eventos foi parcialmente arruinado pelas chamas, mas a UTMIB salvou o que restou com a ajuda do seu agente especializado em combate a incêndios e o protótipo de um revolucionário equipamento. Ambos seriam devidamente apresentados a sociedade riograndina em breve. 
Esta foi a manchete do jornal local que circulou quando amanheceu.