“O que a história conta não passa do longo sonho, do pesadelo espesso e confuso da humanidade”. – Arthur Schopenhauer.
Depois de ver o vídeo com o massacre dos seis jovens eu não tinha como evitar. A lembrança (e suas consequências) do que aconteceu comigo, com meus amigos, e até com aqueles de quem eu não gostava muito, como o Beto, voltou com toda a força.
Primeiro foi a insônia, que me acossou durante uma semana, porque eu tinha medo de adormecer e não acordar mais, ou se acordasse, descobrir que eu estava num prédio em ruínas com um monte de corpos espalhados pelo local. Depois foi o pesadelo, do tipo que se torna recorrente quando tu passa por um trauma.
O meu?
Estou correndo, com o sangue de pessoas que eu tinha matado ou que tinham sido mortas de alguma forma, cujo líquido vital tinha respingado na minha camiseta branca preferida durante a tarefa de execução. Sangue em abundancia também escorria por uma canaleta rente as paredes depredadas.
Nessa hora surge o personagem principal do caos que vejo. Eu nunca, nunca consigo escapar dele: uma criatura mal costurada, tipo uma mistura do Frankenstein e do Jason, que mata o que encontra com as mãos e a boca.
A aberração sempre me alcança quando eu chego perto de um rio vermelho de sangue e corpos despedaçados; me pega pelo pescoço e começa a apertar minha garganta, aproximando sua boca fedorenta da minha cara e aí...
Aí eu acordo, encharcada de suor, com o corpo tremendo e o estômago dolorido por causa da ânsia de vômito.
É, aquela partida de paintboll marcou mesmo a minha vida.
Score: Diversão 0 X 1 Terror traumático.
Esse medo desgraçado atrapalha minha vida. Sinceramente? Preferia não falar sobre o que aconteceu. Mas, em prol de um bem maior, mesmo que eu odeie me lembrar de tudo, eu resolvi.
Vou contar como foi maravilhosa a última partida de paintboll que eu joguei.
Era 00:10. Os times já estavam divididos e em seus QG’s discutindo sobre a melhor maneira de chegar ao ponto onde a bandeira tinha sido hasteada. Desta vez, ela havia sido colocada no topo da caixa de água, corroída pela ferrugem, que ficava sobre o antigo prédio administrativo da fábrica de pescados.
A escada estava muito enferrujada e com um ou dois suportes para os pés quebrados, sem falar do próprio depósito de água, que era mais velho do que Matusalém.
“Não sei de onde o Beto tira essas ideias. Ele sabe que a caixa de água é muito perigosa, por isso a gente usa somente a laje do prédio. Hoje alguém vai se ferrar com certeza”, eu pensei, enquanto os outros integrantes da minha equipe tentavam chegar a um consenso sobre como ganhar a partida dessa noite. Nosso time não ganhava da equipe do Beto há cinco jogos.
O nosso QG era uma das câmaras de refrigeração da fábrica falida. Um espaço pequeno, em relação às outras três que funcionavam na empresa antes dela fechar. Ainda se sentia um pouco do cheiro do peixe que era estocado ali.
Embora gostasse muito de jogar naquele lugar semidestruído, eu tenho que confessar: em algumas ocasiões, sentia um calafrio nos cantos mais escuros do campo.
Os QG’s era um desses lugares. Eu costumava imaginar o que aconteceria se a porta trancasse e nós não conseguíssemos abri-la.
Os QG’s era um desses lugares. Eu costumava imaginar o que aconteceria se a porta trancasse e nós não conseguíssemos abri-la.
“Bobagem”, pensei. “Foi por isso que se retirou a tranca externa e se colocou uma interna. Para evitar acidentes. O Beto pode ser um babaca, mas não é burro.” Eu racionalizei para segurar a ansiedade que sempre sentia quando estava no paintboll.
Hoje a sensação estava mais acentuada do que nos outros dias. Parecia que meu instinto tentava me avisar de que algo terrível iria acontecer.
Hoje a sensação estava mais acentuada do que nos outros dias. Parecia que meu instinto tentava me avisar de que algo terrível iria acontecer.
O time em que eu jogava era sempre o mesmo, composto por um amigo meio fracote, um nerdezinho chamado Karloff, por quem eu nutria uma simpatia enorme desde que nos conhecemos na faculdade; dois colegas da polícia, com raciocínios meio lentos, mas com excelente pontaria e outros seis caras, que eu só conhecia do jogo mesmo.
Após uma breve discussão entre os homens, o capitão decidiu quem formaria as duplas de combatente, que tentariam escoltar três jogadores (o capitão, seu homem de confiança, excelente na mira, e um rapaz franzino, mas excelente corredor).
Eles voltariam suas energias pra chegar incólumes a tal bandeira, matando o maior número possível de adversários, e dos tais atores, que encontrassem pelo caminho. O último homem serviria como uma espécie de coelho, tentando distrair alguns soldados inimigos, correndo e atirando para todos os lados.
Eles voltariam suas energias pra chegar incólumes a tal bandeira, matando o maior número possível de adversários, e dos tais atores, que encontrassem pelo caminho. O último homem serviria como uma espécie de coelho, tentando distrair alguns soldados inimigos, correndo e atirando para todos os lados.
Eu tinha que admitir que essa estratégia nunca tinha sido tentada antes pelas minhas equipes e parecia inteligente. Assim, preferi não dar nenhum pitaco, como fazia algumas vezes, menos quando eu era a capitã (coisa muito rara).
Em geral os colegas preferiam que eu jogasse como combatente porque conhecia alguns “atalhos” inusitados: blefes e força bruta disfarçada. “Depois de ser criada com quatro irmãos uma ‘guria’ aprende certas coisas. Seja pro bem, seja pro mal”, lembro de ter pensado, com um meio sorriso.
O capitão decidiu que eu iria fazer dupla com Karloff. Nos olhamos com cumplicidade. Geralmente era isso que acontecia. Ele somente por ser inteligente e rápido, e eu por ter agilidade, inteligência e capacidade pra protegê-lo, porque, muitas vezes, era Karloff que acabava encontrando uma estratégia de última hora pra garantir uma batalha, ou ganhar a partida, nas raras ocasiões em que isso ocorria.
“Karloff. Por que será que os pais dele deram esse nome pro coitado?”, eu me perguntei olhando pro meu amigo. Eu nunca perguntei pra ele, pra não deixá-lo com vergonha. Ele detestava seu nome.
Então, o sinal pra iniciar a partida soou. Eu e Karloff saímos primeiro e ficamos esperando em posição de defesa, enquanto o restante do grupo deixava o QG e se escondia atrás de algumas barricadas.
O lugar estava mais escuro que o habitual. Com certeza, o Beto tinha desligado algumas luzes pra deixar a coisa pior do que já era, embora eu ainda não soubesse que tudo ficaria pior, muito pior. Meu instinto estava lá, apitando dentro da cabeça, me dizendo que eu deveria sair dali com Karlof o mais rápido possível, em vez de participar daquela partida maldita.
No entanto, eu escolhi me fazer de surda pra aquilo de mais básico que havia aprendido na vida:
Nunca ignore sua intuição.
Assim, eu e meu parceiro paramos na entrado dum corredor estreito e escuro. Nosso time começava a se dispersar, conforme as instruções do capitão. Em seguida, ouvimos o primeiro pipocar das pistolas de paintboll e um grito: “um a menos”. Era alguém do nosso grupo.
Eu e Karloff trocamos um sorriso e continuamos vagarosamente corredor adentro. Com certeza, em pouco tempo nós acabaríamos topando com algum dos atores. Foi o que aconteceu quando chegamos no fim do corredor. Vimos três pessoas vestidas com roupas comuns. Pelo pouco que enxergávamos dava pra ver que as vestes estavam rasgadas.
Lembro que pensei: “Quê? Com tanta coisa boa pra levar pro cinema e pro teatro, eles escolhem logo ISSO? ‘Quando o inferno estiver cheio, os mortos andarão pela terra’. Ai, quem foi que permitiu Romero a começar com essa droga? Ridículo!”.
Eu me levantei para atirar nos indivíduos que estavam parados no escuro, se balançando quietamente. Mas Karlof colocou a mão em meu ombro e me puxou para o canto da parede onde os atores não podiam nos ver.
-Karlof, precisamos atirar...
Ele cortou minha frase, dizendo pra mim falar baixo e não sair dali. Quando eu ia perguntar porque, ele se antecipou:
-Tem algo esquisito nisso tudo. Fica aqui, eu vou dar a volta e ver o que tá acontecendo.
Tentei esboçar uma reação, mas meu amigo falou:
-Faz o que eu to dizendo. Eu acho que sei do que se trata. Não sai daqui, ouviu? De jeito nenhum. – ele finalizou.
Karloff nunca tinha falado comigo daquele jeito. Eu fiquei fula, mas obedeci, porque era Karloff. Se fosse outro cara... E, afinal, pelo que eu conhecia daquele nerd, se ele estava agindo daquela forma deveria haver uma razão.
Meu amigo se afastou rápida e silenciosamente, percorrendo o caminho que tínhamos feito antes. Ele iria pegar o corredor que tinha do outro lado do que estávamos pra chegar nas barricadas na frente do ponto em que os atores estavam. Ele teria uma visão clara daquilo que ele ‘achava’ estranho.
Continuei agachada e espiei em direção ao grupo. Mantive minha pistola apontada pra eles. Caso Karloff não voltasse em seguida eu iria atirar e seguir em frente. Eu queria ganhar aquele jogo.
Vi um dos atores virar em minha direção. Começou a caminhar devagar pra onde eu estava. Era impressão minha ou eu conseguia ouvir um barulhinho esquisito, como se ele estivesse farejando o ar, como um predador faz quando está caçando?
Foi quando eu vi dois jogadores do time do Beto chegarem na entrada do corredor. Um deles deve ter visto um dos figurantes, porque bateu no braço do parceiro, rindo e mostrando algo nas sombras. Depois ele levantou sua pistola e atirou contra o ator. O que vinha na minha direção ouviu o barulho da bolinha de tinta, explodindo contra o corpo do colega de encenação, e parou.
Como o ator atingido não esboçou nenhuma reação, o cara que o acertou disse:
-Oh, meu! Tu tem que cair e fingir de morto!
Foi aí que ouvi aquele grunhido pela primeira vez. Horrível, cavernoso, quase bestial. Eu fiquei ali congelada, enquanto o ‘ator’ saía das sombras rápido como um raio, jogando-se sobre o jogador, que tentava afastá-lo, gritando de forma alucinada. Eu não conseguia ver o porquê, mas já estava começando a tremer.
Karloff tinha razão. Algo muito esquisito estava acontecendo no paintboll.
Karloff tinha razão. Algo muito esquisito estava acontecendo no paintboll.
O parceiro do jogador olhava aterrado pra cena. Nisso, outro...outro (sei lá o que eram aquelas coisas) saiu do corredor, aquele que estava vindo em minha direção, e deu o bote no jogador em choque. Grudou as mãos no pescoço dele e literalmente mordeu o que encontrou pela frente. Eu só vi o cara caindo, com o monstro por cima, esguichando sangue pra tudo que é lado. O terceiro ‘ator’, por fim, se juntou ao festim macabro.
Eu nem pensei em socorrer nenhum dos caras. Simplesmente cai sentada de bunda no chão e fiquei olhando a carnificina. Tentei acreditar que aquilo tudo não passava de alguma ideia maluca do Beto. A pistola estava caída do meu lado. Se aquilo tudo não fosse encenação (e eu ainda tinha uma pequenina esperança que fosse), ela não teria nenhuma utilidade contra as bestas, que, agora eu via, estavam abrindo com as mãos as barrigas dos dois jogadores e começando a comer suas tripas, enquanto (Deus) enquanto eles ainda gritavam de dor.
Então uma mão me puxou com força do chão me empurrando contra a parede.
Eu comecei a chutar as canelas e a empurrar os ombros da criatura. Eu não ia morrer fácil, não. Desferi um soco de direita, mas a coisa conseguiu desviar a cara. Acabei golpeando o ar e quando eu ia morder e gritar, alguém sussurrou, tapando minha boca:
Eu comecei a chutar as canelas e a empurrar os ombros da criatura. Eu não ia morrer fácil, não. Desferi um soco de direita, mas a coisa conseguiu desviar a cara. Acabei golpeando o ar e quando eu ia morder e gritar, alguém sussurrou, tapando minha boca:
-Para, Clara, para. É o Karloff. Fica quieta senão eles vem atrás da gente. Para. Para.
Eu levei alguns segundos pra processar a informação e então parei de me debater. Eu não consegui dizer nada
-Vamos, eu preciso te tirar daqui.
Então, ele me arrastou de volta pelo corredor escuro.
Karloff, afinal, era muito mais forte do que eu pensava.